Mesmo para quem não viveu nos anos mais dolorosos de 1964 a 1985, provocados pela repressão da ditadura militar no Brasil, só de ouvir as histórias e passear pelas ruas do centro de São Paulo, em meio aos grandiosos prédios – muitos, testemunhas daquela época –, consegue imaginar a luta e a tristeza de milhares de cidadãos sonhadores, perseguidos e torturados por policiais, por vezes, até chegar à morte em prol de um ideal: um país democrático e livre.
Em busca de um objetivo, muitos deixaram para trás pai, mãe, mulher, marido, filhos, grandes paixões e amizades, por vezes, sem sequer, se despedir. Centenas encerraram seus ciclos com uma sepultura anônima ou fugidos do País, outros tantos, sequer soube-se o destino, porém tiveram seus nomes inclusos na lista de desaparecidos políticos no Brasil, documento que garantiu a muitos familiares indenizações em dinheiro para reparar o dano causado às vítimas do regime.
Para tratar de um assunto histórico de forma tão atual, a diretora Tata Amaral trouxe para “Hoje”, nome do novo longa dirigido por ela, a história de Vera (ou Ana Maria), e Luiz (ou Carlos) interpretados por Denise Fraga e Cesar Troncoso, que interpretam um casal “companheiro” e apaixonado que vivem um reencontro após décadas de separação causada pelo período da ditadura.
Vera, ex-militante política, recebe uma indenização do governo brasileiro pelo desaparecimento do marido. Com o dinheiro, ela decide comprar o tão sonhado apartamento, mas exatamente no dia da mudança Luiz reaparece, provocando um turbilhão de emoções e lembranças, e levando Vera a tomar decisões importantes. O longa estreia nesta sexta-feira (19).
Denise Fraga conversou com a reportagem e conta detalhes de seu personagem, a quem considera “a mais complexa e dramática que já interpretou”. Confira:
Como você lida com essa transição entre o cômico e o drama?
O meu terreno preferido sempre foi o do meio. Acho um lugar precioso, porque a vida não é dividida em drama e comédia, e tenho um pouco de aflição quando a gente estreia um trabalho e as pessoas perguntam: é para rir ou para chorar? Sempre falo: são os dois. Sempre fui de um lugar para o outro em vários trabalhos que tinham as duas emoções juntas, sendo exatamente dramática e em poucos minutos deixar a plateia em gargalhadas.
Como você se sente em passar essas sensações para o público?
A gente ri pela inteligência do que se compreende, e se emociona pelo sensorial. Quando consigo fazer uma pessoa rir ao mesmo tempo em que provoco emoções nela, me parece um estado perfeito de captura dessa pessoa, porque ela está sendo tomada pela mente e pelo coração. Adoro quando sinto uma risada interrompida por uma flechada de dor no meio do personagem. Adoro fazer isso como atriz. Ao mesmo tempo que tem alguém prestes a chorar e eu a faço rir. Esse lugar é de uma dubiedade muito rica, forte e fértil para a compreensão das ideias. E não tem problema ser drama ou ser comédia. Se for os dois, melhor.
Como você recebeu o convite da Tata para fazer esse filme?
Fiquei muito feliz por ele ser só drama. Acredito que há um preconceito, e as pessoas gostam de colocar rótulos. Por vezes, me associam muito à comédia. Porém, o convite da Tata significou que ela viu vários trabalhos meus, e só o convite em si já me deixou lisonjeada.
Como foi a sua preparação para viver a Vera de “Hoje”?
O César Trancoso e eu ensaiamos por cerca de dez dias, fizemos laboratórios e assistimos aos depoimentos que a Tata colheu para a minissérie “Trago Comigo”, onde as pessoas que foram presas e torturadas relatam suas histórias. Esses depoimentos foram fundamentais. Toda a preparação nos deixou em um estado sensorial muito bom para a delicadeza que seria o set desse filme.
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O filme é sobre uma mulher que quer se renovar, e sobre a tentativa de liberdade em vários sentidos dentro de uma história muito íntima.
O que mais chamou a atenção da Denise Fraga no roteiro?
Dentre a minha preparação, li muito sobre a história do Carlos Marighella e da Clara Charf, por exemplo, que formavam um casal companheiro. Tem uma coisa que amo no filme, que é ficar pensando em quantas mulheres eram apaixonadas por um herói revolucionário e como se misturava a paixão por um homem e a paixão por um ideal naquela época. Fico pensando, no caso de muitas dessas mulheres: quando ele [o homem] se foi, o que restou desse ideal? Um dia elas foram separadas de seus companheiros e nunca mais os viram. É uma vida que não consegue continuar.
O filme estreia em um momento em que se discute muito a Comissão da Verdade. Na sua opinião, como o filme contribui com esclarecimento da sociedade?
Aconteceu uma sincronicidade muito interessante porque filmamos em 2011, o filme demorou para ser lançado, e desde então a Comissão tem ganhado muita força, tentando driblar a lentidão das burocracias. Há muito tempo vivemos em uma democracia e é muito estranho que ainda tenhamos uma caixa preta, um lugar que não podemos tocar. Independentemente do julgamento dos responsáveis, é muito estranho pensar que podemos estar no mesmo restaurante que um torturador conhecido, reconhecido por suas vítimas.
Você disse que esse filme é muito importante para você. Por quê?
Primeiro pela delicadeza do roteiro. Depois, porque foi um trabalho lindo com a Tata, que é uma diretora muito sensível que eu admiro. E porque, talvez tenha sido o trabalho que mais falei no silêncio, que mais falei entre as falas. Digo sempre que é o personagem mais complexo, porque foi o que teve mais lados, e com muitos sentimentos e contradições juntos.
“Hoje” recebeu cinco prêmios no Festival de Brasília, inclusive de melhor atriz. Como é participar de um trabalho dessa categoria?
Foi um dia muito especial. Lá mesmo eu via as pessoas falando frases inteiras que a gente falou. Acho que isso é um sinal que o trabalho chegou na sua comunicação plena.
Como foi contracenar com o Cesar Trancoso?
Fiquei muito feliz porque sou fã dele. É um ator intenso e de grande presença. Ele fala com pouco, é muito inspirador, além de ter um humor ímpar.
E a experiência de ser dirigida pela Tata Amaral?
Foi maravilhosa. Além de ser muito sensorial, ela trabalha de forma especial ao se apropriar das suas obras anteriores, porque sempre tem uma pessoalidade muito forte. Mostra algo que ela quer dizer com um conhecimento de causa.
Qual é a sua expectativa em relação ao lançamento do filme?
O filme não é apenas sobre a ditadura, é sobre uma história de amor, de um casal apaixonado, interrompido por um período crítico. Espero que as pessoas se emocionem como a gente se emocionou fazendo e pensando o quanto isso faz parte da nossa história. Filmes assim não serão suficientes em números para tentar entender o que foi essa parte da nossa história. Pessoas que tinham um ideal com pensamentos totalmente positivos, que levaram uma rasteira da tortura.
*Fotos: Edson Lopes / Divulgação